— Por que lançar dois discos diferentes (“Blues” e “55”) ao mesmo tempo e em um só CD?
Péricles Cavalcanti: Depois de “Blues”, que foi gravado em três dias no estúdio Bebop, a partir de um show que eu vinha fazendo com o Lincoln Antônio e o Claudio Faria (disco que em princípio tinha mais de 20 faixas), e antes que tivesse acertado como e quando lançá-lo, eu comecei a montar o meu próprio estúdio e a fazer outras gravações numa direção bem diferente daquelas.
Então eu pensei que, se vivemos numa época de “crise” da indústria fonográfica, porque não tomar a palavra crise no seu sentido positivo, como momento de mudanças que podem ser enriquecedoras, e experimentar um novo formato e lançar dois discos ou produções diferentes e inéditas, num mesmo CD. Pensando assim, eu encurtei o tempo dos dois, para que tivessem uma duração que coubesse num só disco, sem ficar longo demais, e chamei-o de “Blues 55”.
— Queria que você comentasse mais essa questão da “crise” na indústria fonográfica. Qual o diagnóstico? Que respostas os músicos poderiam dar à situação?
Péricles: Acho que a chamada crise na indústria fonográfica não é só devido à pirataria, mas também e, principalmente, à proliferação dos meios e das facilidades (por causa dos preços relativamente baixos) para gravações e, enfim, para a produção de discos. O mundo digital, com seus equipamentos pequenos, leves e adaptáveis a computadores domésticos e altamente eficientes, democratizou a produção e até a distribuição de material gravado, de qualidade ou não.
Uma pessoa aqui em São Paulo pode trabalhar em conjunto, trocando informação digital com outra que more em Berlim através de correio eletrônico, como eu fiz no “55”. E essas trocas são feitas numa quantidade e velocidade enormes e isso acaba gerando alguma qualidade, criando novas originalidades.
É por aí que os músicos podem também dar suas respostas e indicar novas saídas até para a crise econômica no mundo do disco. Em 1992 eu compus uma canção chamada “Mapa-múndi”, que está no álbum “Sobre as ondas” (1995), que diz: “eu tô aqui, eu tô na África / tô em São Paulo, tô em Pequim / o mundo é uma grande praça / feita p'ra mim”.
— Como você pensa o trabalho de diálogo e intervenção no “passado” da música, muito presente em seus novos CDS, seja nos gêneros re-ouvidos ou re-imaginados, seja na alusão a compositores e cantores?
Péricles: Desde o meu primeiro álbum, “Canções” (1991), que eu trabalho tendo gêneros e até outros artistas como tema das minhas composições, utilizando assim elementos metalingüísticos -as faixas “Sem drama”, “Dos prazeres, das canções” ou “Farol da Jamaica”, são bons exemplos disso.
Acredito que tanto o “formato” canção moderna quanto os principais gêneros de música popular de massa mundial, como o blues e o samba, tenham se consolidado na primeira metade do século XX. Isso torna a época posterior a isso naturalmente propícia a trabalhos com aspectos metalingüísticos. É só pensar na Bossa Nova e especificamente no que faz João Gilberto com o samba, ou no que os Beatles fizeram com o rhythm 'n' blues.
No “Blues 55”, eu continuo trabalhando da mesma forma. A primeira faixa retoma a inspiração da canção de Cole Porter, mantendo seus parâmetros estéticos, para parodiá-la, comentá-la e adaptá-la introduzindo outros elementos, brasileiros, do mesmo nível, como as canções de Ari Barroso e os filmes de Rogério Sganzerla.
— Os discos também dialogam com um repertório que corre além ou à margem da música popular, não?
Péricles: Há referências mais explícitas ao jazz , como no citado “Rebolero” e na composição-homenagem a Thelonious Monk, “Um abraço no Thelonious”, que se refere indiretamente ao João Gilberto, já que me inspirei no seu "Um abraço no Bonfá” para fazê-la.
Além disso, há no “55” uma aproximação maior com a música experimental erudita, sempre trazendo-a para o campo de referências da música popular, através dos dois exercícios feitos a partir de um texto de Charles Ives, “Ivesswing (vinil)” e “Ivesswing plus (cd)”.